Carlos FuentesMilan Kundera

Breve reflexão entre verdade mentira, por ocasião do aniversário de 93 anos de Milan Kundera

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Por Maria Veralice Barroso

Fernando Vicente/Reprodução El País

Fernando Vicente/Reprodução El País

Nesta sexta-feira, dia primeiro de abril de 2022, o escritor tcheco Milan Kundera completa 93 anos. Como costuma afirmar, em tom jocoso, o dia e mês de seu nascimento não lhes permitem um compromisso com a verdade. Mesmo que brinque se intitulando mentiroso por conta da condição de nascimento, mentira e verdade são dois elementos
que, ironicamente, perpassaram e influenciaram a vida e a obra do escritor.

Paradoxalmente, compreendendo a necessidade da verdade para nós leitores, Kundera fez de sua obra um jogo permanente no qual as imagens, gerada por uma frase, uma palavra… estivessem próximas e fossem confundida com veracidade pessoais, históricas e ou sociais. Verdade e mentira, na obra desse autor se confundem e, não poucas vezes, geraram confusões dentro e fora dos textos. Se foi o descompromisso com a verdade que lhe permitiu ironicamente brincar com a crença dos leitores, foi também a aversão para com a veracidade transparente que o permitiu se instalar na única pátria onde habitou e não lhe fora cobrada as “exigências de transparência” e, portanto, a única pátria onde não se sentiu estrangeiro: a pátria do romance.

Com uma vida dedicada à literatura e especialmente ao romance, nascido em 1929, Kundera atravessou o século XX – ainda que a este século subsista, o século XX é o século de Kundera – e, juntamente, com outros escritores tais como Carlos Fuentes e Philip Roth, formou uma espécie de irmandade, que não só propunha escrever romances, mas também pensar sobre eles. A compreensão de romance pensada, compartilhada e adotada por Kundera enquanto romancista, embora se fortaleça nas problemáticas que atravessam o século XX, de um ponto de vista histórico e social, o que de fato interessa ao romancista, é entender como as questões humanas universais se comportam dentro das circunstâncias decorrentes das contingências da História. O problema sobre o qual se debruça Kundera – só percebido tardiamente pela crítica ou boa parte dela -, não é histórico, político ou ideológico, mas sim filosófico, porque metafísico e ontológico.

O jogo, mal compreendido, entre “verdades” sociais e “mentira” ficcionais, talvez tenha sido o grande responsável pelas agruras de Kundera enquanto cidadão e enquanto ficcionista. Assim como se tornou mundialmente conhecido e um dos escritores mais lidos no século passado, Kundera foi também um dos escritores mais mal compreendidos do século XX. Se em territórios da América Latina – como o Brasil, por exemplo – tenha sido negligenciado e muitas vezes rejeitado pela crítica em razão das menções pejorativas aos Regime Socialista Soviético contidas no primeiro plano de sua ficção, no próprio país natal, Kundera sentiu o peso desse jogo ao perder os direitos de escritor, bem como, mais tarde, o direito à cidadania tcheca. Possivelmente o limiar entre a verdade e a ficção, tenha sido também o que faz o nome de Kundera constar entre os injustiçados pelo Prêmio Nobel de Literatura.

Qualquer assertiva acerca da carreira de Kundera é sempre um risco, a comentadora de sua obra Eva Le Grand que o diga. Compreendendo o gesto de adeus de Agnes de A imortalidade como um gesto de adeus do próprio escritor, na década de noventa, Le Grand prenunciou o encerramento da carreira de Kundera, não imaginando ela que depois disso, ele lançaria nada menos que quatro romances além de outros tantos ensaios. A surpresa maior, entretanto, veio com A festa da insignificância, lançado após a publicação, em 2011, de sua obra completa pela Gallimard. Pode ser que Kundera ainda nos surpreenda com outros e novos escritos, entretanto, ainda que isso aconteça, dizer que sua obra está consolidada, não me parece um risco, pois mesmo que tenha apontado para questões estéticas do romance contemporâneo, a estética romanesca na qual Kundera se filiou é a do século XX. Com ele, o romance deu um passo, adiante na trajetória estética iniciada com Rabelais, mas dificilmente terá condições de dar continuidade a esta caminhada. O seu legado será, certamente, muito bem aproveitado por aqueles que, como ele, se instaurarem na pátria do romance e souberem, ao modo kunderiano, desfrutarem da ambivalência entre verdade e mentira.

Por ocasião de seus noventa e três anos, Kundera parece se reconciliar com História e com os críticos da ficção. Ainda que tardiamente, teve restituída recentemente a cidadania tcheca e, na condição de cidadão tcheco, brindou o país natal com sua biblioteca e, como nos informou Herisson Cardoso, neste mesmo espaço, a obra literária de Kundera será tema de um documentário do cineasta Miloslav Šmídmajer. Para além das fronteiras tchecas, o reconhecimento da importância da obra de Kundera como criador e pensador do romance também se fortalece, ganhando expressividade que ultrapassa e muito a condição de escritor de best seller, que lhe fora conferida a partir da estrondosa disseminação de A insustentável leveza dos ser nos anos oitenta.

Se o jogo entre verdade e ficção tenha sido um dos responsáveis pelo ostracismo delegado pela crítica e embora, talvez, não haja mais lugar nos palcos das premiações do Nobel para um escritor como Kundera, verdade é que a grandiosidade de sua obra se deve exatamente à capacidade de jogar com a verdade a ponto de fazer de seus romances uma “brincadeira séria”. Uma brincadeira na qual, paradoxalmente, a aparência de verdade se distancie do verificável, estratégia estética que lhe permite dizer e pensar algo sobre a condição humana que só se pode dizer e pensar por meio da ficção. Sobretudo, para fazer da ficção um jogo entre mentira e verdade, Kundera não foi apenas um mentiroso, como quis parecer ao se pronunciar sobre seu nascimento, ele foi, antes de tudo, um escritor que, sem qualquer constrangimento, fazendo-se dono de uma ironia corrosiva, inverteu e subverteu aquilo que se apresentava como verdade. Ao inverter e subverter campos narrativos pautados por discursos de verdades que, secularmente, edificaram valores religiosos, políticos, sociais, estéticos…, que permeiam e direcionam as ações humanas até aqui, a ficção kunderiana, não apenas destrona narrativas de verdade, sobretudo, ela impele o leitor a repensar a si mesmo como ser que se constituiu por discursos falseados de verdade.

Foi ao longo de quase um século que, brincando com noções de verdade e mentira que o escritor nascido em primeiro de abril, nos fez ver que verdade e mentira se entrecruzam na ficção porque na vida, qualquer dose de verdade é mais bem suportada quando falseada e que é, portanto, só fingindo mentir que, talvez se possa dizer, de fato, a verdade.

Maria Veralice Barroso
01/04/2022

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