Dentre os dias 07 e 11 de agosto, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro recebeu o XV Congresso Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC), reunindo pesquisadores e escritores de todo o país e do exterior. Os membros do grupo Epistemologia do Romance estavam presentes entre os 78 simpósios organizados tematicamente para a socialização de pesquisas e reflexões acerca da literatura e da crítica literária contemporâneas.
Além de estreitar as relações entre literatura e sociedade, o evento mostrou ser uma resistência da comunidade acadêmica num momento de desvalorização da universidade pública por parte do governo.
Veja a seguir as participações detalhadas do grupo:
No simpósio “Textualidades contemporâneas: processos de hibridação”, coordenado pelos professores Dr. Júlio Cesar Valladão Diniz (PUC-Rio), Dr. Fernando Fábio Fiorese Furtado (UFJF) e Dra. Sylvia Helena Cyntrão (UnB), apresentaram-se no dia 09 de agosto o Prof. Dr. Wilton Barroso Filho e a mestranda Denise Moreira Santana. No mesmo simpósio, no dia 11 de agosto, se apresentaram a mestranda Nathália Coelho da Silva e o doutorando Lucas Fernando Gonçalves.
Mestranda Denise Moreira Santana |
Com o título “As vozes narrativas em busca de suas raízes”, Denise Santana promoveu um comparativo das vozes de Artêmio, em La muerte de Artemio Cruz, de Carlos Fuentes, e de Eulálio, personagem de Leite Derramado, de Chico Buarque, observando o conflito presente nas vozes, bem como o papel da imprensa enquanto voz coletiva de manipulação.
A mestranda fez ainda uma recapitulação sentimental, histórica, política, social e econômica realizada pelo personagem principal, Eulálio Montenegro d’Assumpção, representante da elite republicana e burguesa carioca, visto num processo de decadência e invisibilidade social plasmadas no decorrer da narrativa, apresentando este fracasso como o resultado da realidade a qual pertencemos.
Ao mesmo tempo, considerou que a voz narrativa tripla do personagem Artemio Cruz nos prepara para entender as relações da revolução de 1910, no México, por meio de uma recapitulação histórica, política, social, sentimental e econômica de um representante da elite burguesa mexicana que se encontra relutante em relação ao seu processo de morte, de um homem que não poupou esforços para a sua ascensão social desmedida, sórdida e desprezível.
Diante dessa perspectiva, Denise comparou estes narradores-personagens com o narrador de fundo existente na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, um narrador defunto cuja ética não é mais pertencente ao terreno deste mundo, desta existência. Este narrador conquista um espaço de liberdade declarativa para revelar a vulnerabilidade de uma sociedade que tem muito a esconder de si mesma, além do medo de enfrentar as relações de hipocrisia que ela mesma causa, seja no século XX ou no século XXI.
Professor Dr. Wilton Barroso Filho |
Já o prof. Dr. Wilton Barroso palestrou sobre a “Epistemologia da Confusão: uma discussão sobre o papel do sujeito em Foucault na narrativa literária contemporânea”. Barroso aplicou as principais características do conceito de sujeito em Foucault – o cuidado de si e a cultura de si – a narradores duplos da literatura, especificamente nos romances La modification, de Michel Butor, Aura, de Carlos Fuentes, e Uma duas, de Eliane Brum. Esses romances, cotejados pelo texto teórico Eu e os outros, de Carlos Fuentes, fazem emergir um problema filosófico novo: a confusão ou a negação da ordem estabelecida. Nesse sentido, o professor ressaltou a necessidade de uma releitura da constituição do sujeito foucaultiano, impregnado de presenteísmos agamberinos e é compreendido a partir dos estudos de uma “Estética da Confusão e de uma Hermenêutica da Confusão.” Dentro da perspectiva de tempo de Paul Ricoeur, o professor elencou ainda variáveis como pertencimento e identidade no mundo globalizado contemporâneo, examinando as possibilidades reflexivas do narrador “vous”, de Butor, fazendo emergir o conflito do sujeito narrador que mergulha na profundidade do eu.
Em Aura, é apresentado um narrador externo a si mesmo, perdido na dubiedade da sua própria percepção do outro e se confunde. Uma duas, por sua vez, possui duas vozes (filha e mãe) que se confundem e se distinguem na luta contemporânea pelo direito de existir e morrer com dignidade. As três narrativas, tomadas em um conjunto, revelam um aspecto curioso que evoca a passagem do moderno para o pós-moderno, do simples cartesiano para o complexo contemporâneo, aspectos interpretados por Wilton Barroso dentro dos tempos propostos por Ricoeur e que, segundo ele, relatam o confuso.
Assim, um sujeito confuso tem sensações confusas e, consequentemente, tem um presente narrativo também difuso. Isso, por si só, não produz uma estética propriamente dita, mas algo mais simples e sútil, o efeito estético, que, como define Kant na Crítica da Razão Pura, não produz conhecimento. Daí surge uma questão filosófica muito interessante: em que condições o sujeito foucaultiano pode buscar o conhecimento, desertado do singular cartesiano, mas ainda obrigado a responder à questão epistemológica kantiana: o que é que eu posso saber?
Doutorando Lucas Gonçalves |
O doutorando Lucas Gonçalves apresentou a comunicação “A Epistemologia do Romance: fundamentação, pensamento, espírito e memória”, na qual discutiu a Epistemologia do Romance, proposta de Wilton Barroso Filho, refletindo sobre sua constituição como fundamento metodológico, pensamento da sensibilidade e o seu espírito científico. O doutorando compreendeu, concordando com Georg Lukács e Milan Kundera, que o romance é obra oriunda da Modernidade e que sua arte compõe elementos racionais. Com isso, apresentou a proposta do esboço teórico: encontrar as escolhas estéticas de um determinado autor, o tema fundamental de sua obra e a invariância que há na arquitetura literária do(s) romancista(s). Ressaltou, em sua conclusão, que a literatura é um importante referencial para compreendermos o ser em que, na concepção de Heidegger, havia sido esquecido pelos filósofos ao longo da História europeia.
Mestranda Nathália Coelho |
A mestranda Nathália Coelho propôs a comunicação “A ficção enquanto possibilidade de se pensar o humano: estudo sobre o sujeito em Uma Duas, de Eliane Brum”, e refletiu sobre o sujeito contemporâneo no romance em questão a partir de uma perspectiva transversal entre a filosofia e a literatura. Seu pensamento é baseado nos estudos do grupo de pesquisa Epistemologia do Romance, os quais levam o leitor-pesquisador ao exercício de desmonte da narrativa a fim de encontrar a gênese do livro, seu fundamento primeiro.
À luz desta atividade “arqueológica”, a mestranda compreendeu que a personagem Laura, no universo de Uma Duas, inicia e termina o romance ao enveredar-se na escrita de uma ficção dentro da ficção, na tentativa única de “matar” a mãe. Nesse entre-lugar, a história é contada, num primeiro momento, por sua voz em primeira pessoa (para dentro de si) e, posteriormente, em terceira pessoa (para fora de si).
Laura pode ser – dentro do conceito elaborado por Milan Kundera – o ego experimental de um escritor em formação que vive, sofre, escreve e pensa (não necessariamente nessa ordem) a própria história e que a cria. Ela aparenta ser sujeito e objeto de si mesmo ao se enveredar numa reflexão sobre sua pluralidade. Ela é, literalmente, “Uma Duas”: mais de um indivíduo, no âmbito coletivo e no privado, em sua casa e em sociedade.
A mestranda lembrou ainda que essa percepção se dá ao enxergar a personagem em contexto: numa perspectiva metaficcional – galgada nos estudos de Linda Hutcheon – de viver e, ao mesmo tempo, de pensar a história, transitando entre “ficção” e “realidade”. Esta condição da narrativa abre precedentes para dicotomia ética e estética da recriação de si mesmo e as relações de poder estabelecidas no convívio com o outro, também dotado de múltiplas identidades e necessitado da invenção de seus próprios personagens.
Immanuel Kant, Georg Hegel e Michel Foucault, justapostos em seus respectivos contextos históricos ajudaram a mestranda a compreender e aprofundar a noção de sujeito desde a modernidade: aquele que se responsabiliza pelos seus atos, pensa por conflito e carece da necessidade de conhecer-se em profundidade bem como sua própria cultura. Por fim, o trabalho defendeu a possibilidade de compreensão do campo ficcional como um espaço de análise da condição humana.
Profa. Dra. Émile Andrade (Posli-UEG) e doutoranda Thayza Matos |
A doutoranda Thayza Alves Matos, por sua vez,participou de dois simpósios: “Crimes, Pecados e Monstruosidades”, coordenado pelos professores Dr. Julio Jeha (UFMG) e Dra. Josalba Fabiana dos Santos (UFS); e “Literatura e testemunho: teorias, limites, exemplos”, coordenado pelos professores Dr. Carlos Augusto Nascimento Sarmento-Pantoja (UFPA) Dr. Marcelo Paiva de Souza (UFPR) e Dr. Wilberth Salgueiro (UFES).
No primeiro deles, a doutoranda apresentou a comunicação “Decifra-me ou te devoro: epistemologia, literatura e violência”, promovendo uma discussão acerca da possibilidade de construir uma Epistemologia do Romance que contemplasse três obras literárias de não-ficção: A Sangue Frio: Relato Verdadeiro de um Homicídio Múltiplo e suas Consequências (Truman Capote, 1966), Zodíaco (Robert Graysmith, 1986) e Anatomia de um Julgamento: Ifigênia em Forest Hills (Janet Malcolm, 2011).
Para além das aproximações dos textos com o gênero policial, Thayza buscou compreendê-los como obras que se dão a conhecer por meio daquilo que Wolfgang Iser denominou “lugares vazios”, em sua Estética da Recepção. Caminho de análise semelhante e, por isso, complementar, o paradigma indiciário de Carlo Ginzburg e outros teóricos da história permitiram acessar esses romances a partir daquilo que chamam de “lacunas”, “rastros”, “sinais”, “códigos”, exibindo-se como textos que se fundamentam a partir dessas operações.
Segundo a doutoranda, estes relatos inserem-se numa longa tradição de narrativas detetivescas que necessitam de uma investigação que contemple pesquisas, arquivos de várias ordens, vestígios, entrevistas, testemunhas e provas – todo um procedimento científico que, na competência artística destes escritores, se transforma em literatura e em experiência estética. Desta forma, Thayza discutiu a viabilidade de se erigir uma epistemologia a partir desses vazios e lacunas, compreendendo estas operações de linguagem como um método, um decifrar de signos, um examinar pistas, um esmiuçar detalhes.
No segundo simpósio, a doutoranda apresentou a comunicação “A guerra não tem rosto de mulher: o silenciamento do testemunho feminino”, em coautoria com a professora Dra. Émile Cardoso Andrade (Posli-UEG). As pesquisadoras observaram que a tradição ocidental, desde a história antiga, trata a guerra em suas narrativas como local da violência e da virilidade. Num sentido oposto, analisam A guerra não tem rosto de mulher, de Svetlana Aleksiévitch (2016), como um novo olhar sobre esse campo de batalha: relatos e testemunho de mulheres combatentes soviéticas na Segunda Guerra Mundial.
De acordo com as pesquisadoras, os testemunhos sobre um determinado evento são sempre tecidos pela memória e pela lembrança, constituidoras de um terreno de silêncios e silenciamentos. Dessa forma, observam na obra de Aleksiévitch um esforço em tentar recuperar o olhar dessas mulheres sobre um evento tão doloroso. Por ter nascido na Bielorúsia, Aleksiévitch teve contato direto com mulheres que lutaram e sobreviveram as investidas alemães. Quase um milhão de mulheres participaram do Exército Soviético, um dos (se não o maior) contingente feminino no período. A presença dessas mulheres e moças, no entanto, foram apagadas com o tempo, apesar de todo esse quantitativo.
No simpósio “Ética, Estética e Filosofia da Literatura”, coordenado pelos professores Dr. Vitor Cei (UNIR) e Dr. Sarah Maria Forte Diogo (UECE), a mestranda Etel Nucia Oliveira Monteiro apresentou, na manhã de 9 de agosto, a comunicação “Encontro entre Kundera e Diderot”, analisando Jacques e seu amo, de Kundera, e a peça Jacques, o Fatalista, de Denis Diderot.
Segundo a pesquisadora, essas duas obras originais dialogam pela transgressão da unidade narrativa e pelo culto à liberdade. Kundera usa da polifonia, para construir a simultaneidade das histórias de amor, que acontecem na mesma cena, bem como o cruzamento de diálogos e o uso do espaço cênico em planos, onde o fundo ora é o presente, ora é o passado e as personagens memoriadas dialogam com personagens do presente. Esse movimento propicia reflexões, fazendo com que a relatividade se torne transparente, já que cada qual chega a conclusões diferentes das situações vividas pelos outros.
Etel Nucia percebe que as personagens principais são semelhantes, mas que há diferenças na motivação e na intencionalidade das pessoas: pode-se julgar Jacques negativamente quando traiu seu melhor amigo, Bigre, deitando-se com a namorada dele, Justine? A situação é igual à que o Amo passa com seu “amigo” Saint-Ouen, mas isso faz de Jacques um igual? Mais uma vez se explora a condição humana de forma leve pela utilização do teatro de boulevard, o vaudeville, onde as reviravoltas acontecem de forma dinâmica e inverossímil.
A pesquisadora ressalta uma fala de Jacques a seu Amo, na qual há questionamentos sobre o “Nosso Amo”, referência de Kundera ao seu débito com Diderot, por ser, talvez, um mau poeta e não poder fazer nada mais que maus poemas. Kundera brinca com a plateia, em sua maioria maus poetas e, por isso, apreciadores da sua arte.
Por fim, ressaltou-se a condição do ser humano, que está entre o instinto e a racionalidade, figurada nas obras analisadas através da decisão entre ser digno e fiel nos assuntos da alcova ou dar vazão ao prazer momentâneo, arcando depois com as consequências. O Jacques de Kundera agradece o autor por ter a solução perfeita para que ele escape da morte prematura: seu melhor amigo é seu carcereiro e o liberta em nome da suposta fidelidade existente entre eles, uma grande mentira que encobre sua traição com a mulher de seu amigo. Mas a verdade valeria uma vida? Poderia Jacques contar a verdade e não sofrer a vingança? Da situação do Amo, por sua vez, parece surgir a certeza de termos a liberdade, de sermos donos de nossos atos.
No simpósio “Literatura e Dissonância”, coordenado pelos professores Dr. André Dias (UFF), Dr. Marcos Pasche (UFRRJ) e Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS), a doutoranda Janara Laíza de Almeida Soares apresentou, no dia 11 de agosto, a comunicação “Dou-te a prova: os jogos da verdade em Pantaleón y las visitadoras, de Mario Vargas Llosa, e em Os visitantes, de B. Kucinski”. Segundo a pesquisadora, os estabelecimentos do estatuto da verdade no mundo da ficção e no mundo da vida tem naturezas diferentes. No mundo da vida pedem-se provas, documentos, testemunhos, gravações; no mundo da ficção, o estatuto da verdade passa pela atividade hermenêutica e pela constituição da verossimilhança.
No entanto, a doutoranda ressaltou que há uma pretensa objetividade no estabelecimento das verdades no mundo da vida que entra em contradição tanto com as manipulações de discurso quanto com a subjetividade complexa do ser humano. Esse movimento dissonante não passa despercebido na arte literária. Nesse sentido, discutiu-se nesta comunicação as formas de estabelecimento de verdades e de manipulação das mesmas nos romances Pantaleón y las visitadoras (1973), do peruano Mario Vargas Llosa, e Os visitantes (2016), do brasileiro B. Kucinski.
Através do narrador ausente, da transcrição de documentação e da pretensa narração objetiva da mídia, no primeiro romance, e do questionamento constante das relações verdade literária/verdade biográfica no segundo, emerge a questão de como as verdades são construídas, bem como as consequências éticas do resultado dessas construções. A doutoranda discutiu, dessa forma, as relações entre a Verdade, o Bom e o Belo, cuja vinculação com literatura ainda é esperada pela recepção não especializada; sobre as mudanças na concepção de verdade e a noção de “possibilidades de verdades” na literatura, trazida pela Epistemologia do Romance; e, por fim, analisou como os romances questionam filosoficamente a exigência do estatuto da verdade absoluta (que ainda vigora em tempos de “pós-verdade”), bem como as contradições que emergem desse movimento.