Um mês da morte de Milan Kundera
“Não me parece inverdade dizer que a reabilitação da recepção da obra de Kundera no Brasil muito se deve às pesquisas orientadas por Wilton Barroso Filho a partir de 2008”
Em entrevista ao site da Epistemologia do Romance, pesquisadores da obra de Milan Kundera, entre eles Maria Veralice Barroso, comentam a importância do autor para o campo da Literatura quanto para a própria concepção da teoria.
Por Nathália Coelho
Três teses, incluindo a primeira escrita no Brasil sobre a obra de Milan Kundera; quatro dissertações; mais de vinte artigos publicados; incontáveis aulas e comunicações em eventos da área. Esse é o saldo – até então – de pesquisa realizada pelo grupo Epistemologia do Romance, no Brasil, acerca da obra do romancista tcheco (1929 -2023), falecido há exato um mês, em Paris, conforme anunciou a Editora Gallimard no dia 12 de junho deste ano.
Mas qual é o motivo para o autor ser o foco de interesse da Epistemologia do Romance?
“Talvez o correto seria dizer que sem as reflexões provocativas de Kundera, não teríamos a ER, com as mesmas configurações que hoje temos, muitos dos interesses de pesquisa do Grupo foram provocados pelas leituras de Kundera que o próprio Wilton Barroso Filho já trazia consigo. E seu primeiro artigo Elementos para uma Epistemologia do Romance já evidencia o lugar de destaque que este autor teria para a ER”, afirma a vice-líder do grupo e pesquisadora na obra, Maria Veralice Barroso.
Barroso é autora da tese de Doutorado A obra romanesca de Milan Kundera : um projeto estético conduzido pela ação de Don Juan (2013), a primeira publicada no Brasil. De acordo com a teórica, os estudos kunderianos foram de grande relevância para a consolidação das discussões sobre Estética e Epistemologia no âmbito dos estudos literários no grupo.
Segundo a teórica, “a Epistemologia do Romance se valeu de muitas reflexões de Kundera para constituir seu escopo de pesquisas. Não só tomando por referência aquilo que ele nos apresenta no campo da literatura – seja enquanto criador ou seja pensador dela -, mas também pelos desdobramentos filosóficos que a obra não só permite, como exige de um leitor-pesquisador”.
De forma geral, a teoria Epistemologia do Romance baseia-se em três campos da Filosofia: a Estética, a Hermenêutica e a Epistemologia, na análise de objetos artísticos. Quando foi idealizada, em meados de 2003, o romance literário foi a “primeira porta de entrada da ER para as discussões estéticas”, enfatiza Barroso, complementando: “Kundera contemplava esse tripé uma vez que, tanto sua ficção, quando seu pensamento teórico, aproxima de modo muito particular estes três ramos da filosofia.”
A estudiosa afirma que o envolvimento de Kundera à Filosofia, em sua obra, se dá veementemente para conseguir manter a sua autonomia de criação estética e não o contrário, ou seja, o escritor rechaça a ideia de estar a serviço da “comprovação de qualquer verdade, contida em qualquer corrente filosófica”, destaca. “O pensamento do modo desenvolvido por Kundera é uma exploração de questões existenciais. Na obra literária de Kundera a existência é explorada continuamente por seus ‘egos experimentais’”.
Ademais, Barroso explica que o romancista tcheco também foi importante ao apresentar, a partir dos seus ensaios, outros autores como Hermann Broch e Carlos Fuentes – cruciais para a elaboração de conceitos no âmbito da teoria, como o de Kitsch, “romance que pensa”, “efeito estético”, “observatório literário” por exemplo. “Estes autores chegaram até nós através de Kundera que parece ter criado, no século XX, uma espécie de confraria do Romance com romancistas de várias partes do planeta”, diz Barroso.
Apesar da evidente importância de Milan Kundera para a ER, faz-se necessário ressaltar, conforme aponta Maria Veralice Barroso, que “o grupo não tomou de empréstimo o pensamento de Kundera para reproduzi-lo, mas com ele estabeleceu diálogos que lhe permitiu construir suas próprias bases teóricas; que em um movimento ininterrupto também foram reivindicando novos diálogos, novas parcerias e outros autores tem chegado para fortalecer as relações entre a existência e o pensamento, a criação e a recepção do objeto estético”.
Recepção no Brasil
Se de um lado a obra kunderiana foi de extrema relevância para a constituição da Epistemologia do Romance, por outro, o trabalho reflexivo do grupo também abriu espaço no Brasil para que o autor tivesse uma recepção mais atenta, para além de disputas ideológicas.
Segundo Barroso, Milan Kundera popularizou no Brasil através da publicação de A insustentável leveza do Ser, entre os anos de 1984 e 1986. Era um período de euforia da redemocratização, portanto, muito propício para a negativa a tudo que representava a Ditadura Militar.
“Em termos políticos, havia uma vitalidade da esquerda, que ainda tomava o socialismo soviético como referência. Apesar da estrondosa recepção popular, do ponto de vista acadêmico, A Insustentável leveza do ser foi recebido unicamente como crítica ao regime socialista soviético, o que acabou gerando certo desagrado nos intelectuais brasileiros, em sua maioria de esquerda”, explica Barroso.
Para a pesquisadora, a crítica ao socialismo, entretanto, “evidencia um olhar bastante simplista em relação à obra de Kundera, uma interpretação do primeiro plano dela sem levar em conta o conjunto dos textos ou as inversões causadas pelo jogo irônico do autor, que quase sempre brinca com a ingenuidade do leitor que se contenta com a leitura de um dos seus textos sem levar em conta os fios que a conduzem e que levam a reflexões complexas sobre a existência.”
A crítica enviesada, portanto, acabou levando Milan Kundera ao estigma de um escritor de direita, sendo usado, inclusive, para propagandas desse lado do espectro político nacional. “Isso lhe custou um ostracismo imenso na academia brasileira, onde por mais de 20 anos fora deixado de lado”.
A revitalização da recepção de Kundera no Brasil começa só a partir dos anos 2000, muito pelas pesquisas orientadas por Wilton Barroso Filho, a partir de 2008, constata a teórica. “Barroso Filho não só retomou as leituras da obra literária de Kundera e reorientou suas interpretações para um campo além do ideológico, como também apresentou ao público brasileiro o grande pensador do romance moderno sob uma perspectiva que conjuga literatura e filosofia”.
Desde esse momento, a obra de Kundera foi analisada em diversos trabalhos, além do inaugural, de Maria Veralice Barroso. Cada um em suas especificidades, mas abrindo espaço para uma discussão acerca da existência. Dentre estes, por exemplo, destaca-se a dissertação de mestrado de Herisson Cardoso, defendida pelo Programa de Pós-graduação em Metafísica da Universidade de Brasília, cujo título é Elementos para uma ontologia do romance : um estudo sobre a arte do romance de Milan Kundera.
Para o pesquisador – hoje doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Literatura da UnB – Kundera declarava que a realidade é muito mais complicada do que nós imaginamos. Um apontamento muito além de dicotomias explicitadas acima; que permanece atual e contundente. “Assumir tal consciência significa uma possibilidade de nos vacinarmos contra verdades prontas e totalizantes, fabricadas sistematicamente com o propósito de limitar e moldar as narrativas de nossa existência”, explica Cardoso.
“Kundera nos incita a refletir através de uma sabedoria da incerteza, inerente à arte do romance – aquela que vislumbra a complexidade profunda das coisas, que não se entrega a explicações fáceis e rápidas. Praticar essa sabedoria incide em estar alerta e não se deixar levar por promessas de maravilhosos idílios que, em suas utopias, ocupam-se perenemente de soterrar e levar ao esquecimento tudo aquilo que é diferente”, afirma o pesquisador.
O Prof. Dr. Lucas Mudo, por sua vez, autor da tese O kitsch como forma estética do idílio em A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera e do livro O Kitsch em Milan Kundera – A Estética do Idílio em a Insustentável Leveza do Ser derivado do seu doutorado, também pela PósLit/UnB, e publicado pela Editora Appris, em 2021, reflete, entre outras coisas, acerca do questionamento: Uma vida de leveza deveria não ter sofrimento?
“O ser humano, para Kundera, não é senhor do Planeta e nem dos animais que na Terra habitam. A condição humana, no entendimento kunderiano, tem atitudes nem sempre racionais para consigo mesmo e em sua essência só quer ter uma vida mais leve, serena e feliz”, afirma Mudo. Aqui, você tem acesso a uma minibiografia – Trajetória existencial e artística – de Kundera, elaborada pelo pesquisador.
Ainda este ano, chega ao Brasil uma nova obra ensaística de Milan Kundera: Um Ocidente Sequestrado: Ou a tragédia da Europa Central, pela Companhia de Letras, mas que já pode ser comprada em pré-venda.
Para conhecer as teses, dissertações, artigos e comunicações acerca de Milan Kundera produzidos pelos pesquisadores do grupo, basta navegar por nosso site, ou clicar aqui. Reunimos em um único arquivo as referências!